Caros Livres Pensadores
Há pouco tempo atrás recebi um e-mail do sr. Juanico di Salvo - escritor, blogueiro (http://www.juanico.com.br/Index.php/) e também livre pensador – elogiando este blog e divulgando seu mais recente livro, "Penso, Logo Complico". Como aperitivo, cedeu gentilmente dois de seus textos para divulgação, quais sejam: "O Último Sermão do Padre Bartolo" e "Discurso de Paraninfo". Sinceramente, gostei muito do que li e parece que a obra é promissora. Inteligentes e bem humorados, seus textos abordam exatamente o que este blog propõem: o livre pensar e expressar. Segue um "pitaco" para que todos saboreiem. Bon appétit.
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O Último Sermão do Padre Bartolo
Juanico di Salvo
O padre Bartolo inicia sua leitura:
Estando Jesus a caminho da Galiléia eis que aproximou-se dele um grupo de homens vindos de Jericó. Eles carregavam um jovem que aparentava estar morto. Deitaram-no no chão e pediram ajuda ao Senhor. – Senhor, só tu podes ajudar-nos em nossa dor e na nossa ignorância sobre a morte do nosso irmão.
Ouvindo isso, Jesus lhes disse: “como podeis ter certeza da morte deste homem?”
E eis que no grupo havia um homem chamado Flavius, que disse, “Senhor, ele não respira!”
E Jesus lhe disse, “E isso é prova definitiva de que esteja morto?”
Então Flavius insistiu: “podes ver com teus próprios olhos, Senhor, ele não se mexe”.
E então Jesus olhou atentamente para o homem deitado e disse: “Já pensaram que isso pode ser um truque? Olhai isto...” (mostra uma rigidez engraçada, do tipo “estátua”). Ao ver isso todos ficaram admirados. E o irmão maior de Flavius disse: “tua performance é verdadeiramente notável, Senhor, nunca havíamos visto algo assim antes. Tu deves ser um ator profissional. Agora, se me permites observar, o corpo que trouxemos à tua presença já começa a apodrecer”.
E Jesus disse, “pois então vos pergunto, homens de Jericó: onde está a vossa fé? Já tentastes lhe fazer cócegas nos sovacos?”
E um deles respondeu: “Sim, Mestre, mas ele não deu sinal de vida.”
Mas Jesus ainda não estava convencido e perguntou: – “... e na planta dos pés?”
E Flavius respondeu com firmeza: – “... também já tentamos, Mestre, mas ele não reagiu.”
Porém, o Senhor não desistia facilmente e lhes perguntou: – Tiraram-lhe as sandálias antes de lhe aplicar cócegas na planta dos pés?
E então Flavius disse: – “Sim, Senhor, de fato lhe tiramos as duas sandálias. Agora ele está em tuas mãos, só tu podes nos ajudar!”
E Jesus calmamente falou: – “Em verdade vos digo, homens de Jericó: vocês estão certos, isto não é um truque, o homem que agora jaz deitado no chão, está realmente morto!”
E todos os presentes viram que aquilo era a mais pura verdade e viram que isso era bom e se regozijaram e disseram: – “Muito obrigado, Senhor! Nossa viagem não foi em vão, vos sois realmente o Messias, o filho de Deus, aquele que veio para nos trazer a verdade.”
(Fim da leitura)
Nesta passagem Jesus nos diz que se não conseguimos mudar a realidade, temos que mudar o paradigma. Como fazem os analistas financeiros, esses santos modernos do Deus “mercado”... Eles mudam suas análises para explicar o que já aconteceu, mas nunca sabem o que vai acontecer amanhã.
Jesus nos ensina a não perder tempo pedindo-lhe milagres inviáveis, bem como a tirar todas nossas dúvidas antes de aceitar a realidade como ela é.
Quando um pênalti está prestes a ser cobrado, não há sempre torcedores rezando para que a bola entre, e torcedores rezando para que o goleiro defenda? Se Ele realmente torcesse por algum time, algum outro time teria chance? Se Ele está conosco, quem estará contra nós? Irmãos, não há fé que possa resolver o drama de um time de pernas de pau.
Exemplo clássico foi o nosso irmão Adelir, “o padre baloeiro”. Que Deus o tenha! Pois com toda sua fé não encontrou proteção contra os ventos fortes do litoral, nem tomada nas alturas para carregar a bateria do seu celular... Deus sabe o que faz, e o que deixa de fazer.
Nossa eucaristia tem-se tornado um sucesso nacional graças ao novo tempero que introduzimos no preparo das nossas hóstias. Aliás, tenho visto muita gente comungar, e depois retornar à fila para repetir... E vos digo: evitemos esta prática para não retardar o andamento da fila. Sei que não é fácil resistir às tentações da gula! É só falar em hóstias e muitos de vocês começam a salivar... Paciência!
Sabemos da importância dos temperos para o desenvolvimento da humanidade. O primeiro tempero humano que conhecemos foi usado para salgar o pão. Pois está escrito: “comerás o pão com o suor do teu rosto...”
Mantemos em segredo a receita das nossas hóstias, pois muitos padeiros e confeiteiros já tentaram nos imitar. Sem sucesso. Os seguidores da nossa paróquia triplicaram, e também triplicou nossa arrecadação mensal. E graças a quem? Às nossas hóstias temperadas.
Achei oportuno interceder pelos nossos dizimistas e pleitear junto à arquidiocese uma redução do dízimo para a metade do valor. Se Ele está conosco, quem estará contra nós? Hummm... na primeira instância não fui atendido. Na segunda me acusaram de rebeldia. É por isso que temos hoje a presença do Monsenhor Bernabeu e do Arcebispo Dom Eusébio, acompanhando o meu caso. Eles vieram à paisana.
Na minha missa de despedida (suspiro), vejo com alegria a presença de muitos jovens. Alguns são frequentadores dominicais assíduos que sentirão minha falta, outros vieram só para ter certeza da minha partida.
Caros irmãos, nossa juventude anda confusa pelos maus exemplos dos mais velhos. Juízes do outro lado da balança da justiça, padres pedófilos, falsos profetas, políticos de butequim, empresários lobistas e velhos pornógrafos infantis. Nossos jovens perderam as referências e não sabem mais a quem seguir.
Vi um jovem parado na esquina lendo no vidro de um carro um bonito adesivo: “Jesus salva”. Logo atrás vinha outro carro com outro adesivo: “Ecco Salva”. Perceberam a confusão na cabeça deste jovem? Num outro adesivo lia: “Jesus é o maior, o diabo não está com nada!”. Haja provocação. Não se brinca com fogo!
Nos jornais vemos psicólogos cometendo suicídio e jovens médicos morrendo de automedicação! De um empreiteiro ouvi as receitas que andam de boca em boca: “O combustível da política é a propina. Já conheci políticos honestos, mas evito-os, são os que cobram mais caro. Se quiser dobrar um político honesto, dobre-lhe a propina”, etc.
Muitas seitas consideravam a televisão uma coisa do demônio. É claro que tem muito lixo na televisão, nem vou citar os reality shows porque sei de gente respeitável, como o arcebispo, que não perde um lance. Mesmo assim, nós nunca classificamos a televisão como coisa do demônio. Cada qual tem seu livre-arbítrio. Eu adoro o Discovery! Mas já notaram quantos demônios tiram das pessoas pela televisão?
Um jovem acompanhou uma amiga no templo de uma igreja que não vou citar, por questões éticas. No meio do culto ele foi arrastado até o meio do altar por dois leões de chácara que o sacudiram, bateram na sua cabeça, nas costelas e no traseiro. Então, ele me disse, “nunca imaginei que os demônios se alojassem em lugares tão improváveis. Na cabeça ainda vai, mas no meu traseiro, padre Bartolo?! Me tiraram 5 demônios... e a carteira!”
Usemos a inteligência que Deus nos deu. Temos que separar o joio, mas ficar com o trigo!
Encontrar Jesus virou moda. Mas parece que muitos dos que encontraram Jesus não aproveitaram bem a oportunidade. Ou encontraram Jesus ocupado com outras coisas. Vejam o exemplo do dono do açougue “A carne é fraca”, aqui em frente. Disse ele que havia conversado com Jesus e que estava cheio de júbilo e até tinha se curado do ranger de dentes. Entretanto, continua roubando na balança e no troco.
Certamente lembram do telhado daquele templo que desabou e levou muitos desta para melhor. Não, não foi castigo. O culto havia acabado de terminar, portanto, não havia tempo para pecados que justificassem um castigo desse tamanho. E os cupins são insetos. Insetos ateus! E com os ateus precisamos usar a inteligência, meus irmãos, não a fé. Irmãos, a fé não remove excesso de peso nem madeira podre. A fé não altera a lei da gravidade.
A fé pode até remover montanhas, mas não remove cupins. Como ter fé num lugar onde há falta de manutenção? Outro dia vi um carro caindo aos pedaços com um adesivo desses clássicos: “Jesus é o Caminho”. Percebem o contrasenso?
Muitos “escritos sagrados”, só foram passados pro papel depois de séculos de tradição oral. Vejam, em Apocalipse 7:1, onde João diz: “vi os quatro anjos em pé, nos quatro cantos da terra...” Obviamente que para João a terra era plana, quadrada e pequena, pois viu os 4 anjos no mesmo vislumbre. E João viu também bestas, dragões, muito fogo e anjos tocando trombetas.
Se alguém viesse aqui hoje com uma história dessas, a primeira coisa que eu faria era pedir um teste de bafômetro e um exame toxicológico. Esses apocalípticos são engraçados, sempre estão torcendo para que o mundo acabe quanto antes, já notaram? Veem sinais do fim dos tempos em tudo, guerras, vulcões, terremotos, pestes, inundações, enfim.
A história do Gênese me custou caro junto à cúria. É que mais parece uma história de ninar. Com apenas oito anos de idade, Alisson perguntou à sra Mônica, a professora de catequese da nossa paróquia: “... fessora, o casal de cachorrinhos que Noé colocou na Arca era de qual raça: poodle, rottweiler, pinscher, linguiça, dálmata ou vira-lata?” Se o homem desenvolveu centenas de raças de cachorros em poucos milênios, o que a natureza não fez em centenas de milhões de anos? Percebem o drama que é explicar a riqueza da diversidade, pela fé?
Aliás, se a resposta correta fosse o cachorro linguiça, muita gente consideraria que foi um erro de projeto. A sra Mônica não soube responder. Procurou minha ajuda. Eu sabia que essa história do Dilúvio e da Arca era um plágio da Epopeia de Gilgamesh escrita na pedra 18 séculos antes que os textos do Antigo Testamento.
Bem, voltemos ao Gênese, não é por má fé, não, mas a Arca de Noé não tinha condições. Com mais de 280 espécies de dinossauros já catalogados, sinceramente!
E as águas cobrindo todas as montanhas da terra? Ora, o Everest tem quase 9 km de altura e sem aquela erosão toda naquela época devia ter 10 vezes mais. Vale o trocadilho: “tanta água assim, não tem cabimento!”
A pergunta do Alisson coloca a história da Arca de Noé por água abaixo. Para encurtar, dona Mônica me dedurou e eu tive que fazer um relatório para a arquidiocese, que o repassou ao CNBB, que lavou as mãos, que encaminhou ao papa, que é o único mortal com linha direta com o Criador para tratar das coisas que “só Deus sabe”.
Bento XVI recebeu a dúvida do Alisson no mesmo dia em que andou criticando os muçulmanos, e desandou a falar em várias línguas (simultaneamente!). O papa mandou aplicar ao Alisson 200 pais-nossos de penitência. Não achando justo, eu abaixei a pena para 50, em ritmo ligeiro. Não é que novamente fui dedurado pela dona Mônica?!
Um biólogo famoso, após um erro que cometera quando criança, foi chamado pela mãe que lhe disse: “Filho, não existe pecado, existem apenas coisas adequadas ou inadequadas, oportunas ou inoportunas.”
Eis uma versão interessante para o pecado e para o livre-arbítrio. Sua mãe transferia para ele a responsabilidade pelos seus atos, sem prêmios celestiais ou castigos infernais.
Nestes momentos de crise, em que os pecados capitais estão sob revisão, gostaria de falar sobre o conceito de pecado no mundo atual.
Hoje, ser pobre, gordo, não entender de informática, ser velho, desempregado, não passar no vestibular, ser paranista... é pecado. Não ter um bumbum bonito também é pecado e o silicone é uma benção! Aliás, ser feio também é um grande pecado.
Mas, inegavelmente, o pior dos pecados capitais modernos é ser feio e sem capital. O Monsenhor Bernabeu contava a história de um senhor, muito feio, que esperava o nascimento de seu primeiro filho. O menino nascera parecido com o pai, exceto pelas orelhas, que eram ainda maiores. Ele disse para a mulher: “Que coisa bonitinha nosso bebê, amor!”. Mas a mulher, traumatizada depois de ver a criança, começou a chorar e a berrar. Então ele a consolou: “Desculpa amor, eu só estava brincando...”
Cuidado, irmãos, rir da desgraça alheia também é pecado!
A preguiça é um dos maiores pecados capitais. A Bíblia registra nada menos que 57 passagens sobre a preguiça. E deixaram de incluir outras duzentas. Adivinhem por quê? Pura preguiça! Vejamos esta famosa passagem do Êxodo: “Depois de 40 dias de jejum, Moisés descia o Monte Sinai exausto, carregando as Tábuas da Lei, que eram de pedra. A multidão o esperava dançando em volta do Bezerro de Ouro. Faltando 70 metros de descida, Moisés sentou para tomar fôlego e aguardou o intervalo musical. E eis então que gritou: Será que ninguém vai me ajudar com estas pedras?”
Moisês ficou tão bravo que quebrou as pedras e ordenou a matança dos mais festeiros. Foram sacrificados 3 mil num só dia! Depois, chateado pelo ocorrido, Moisés reparou num pedaço de pedra ensanguentado, no chão. Uma tristeza profunda invadiu seu coração. A pedra ainda mostrava: “Não matarás!”
Garrincha, que Deus o tenha! (de preferência na ponta direita), não foi apenas um dos melhores jogadores de futebol de todos os tempos, como um dos mais falsos da história. Garrincha era um perfeito mentiroso. Ele fazia que ia em frente, mas voltava; depois ameaçava ir pela esquerda e cortava pela direita!
E o hedonismo, que prega o prazer a qualquer custo? Vamos com calma, irmãos! É inteligente usar a liberdade para cair nas garras da dependência?
Muitos aspiram ao prazer individual total. Alguns aspiram e até injetam. Para mim, overdose é “realizar uma viagem longa demais para lugar nenhum.” Esta questão é delicada, mas temos que encarar. O crime organizado mata mais de 500 pessoas por ano em Curitiba. “Números oficiais”. Mata-se por menos de 10 reais! A questão para o usuário é: mocinho ou bandido? Ou depende da festinha?
Tenho sido um padre polêmico. Lembro de ter afirmado que Bush queria a união dos muçulmanos e por isso os juntava em Guantânamo. Pois também foi Bush quem reacendeu o grande sonho de todo fundamentalista: “antecipar o descanso eterno para aos inimigos!”. Mas será que não temos fundamentalistas na nossa igreja?
O caso da moça italiana que ficou em coma irreversível durante 17 anos comoveu todos nós. E trouxe à tona o tema da eutanásia. Parece que aqui os papéis da ciência e da igreja se inverteram. A igreja do lado dos equipamentos médicos e os médicos libertando o espírito desta jovem, acorrentado por tanto tempo.
Imaginem um médico confortando um paciente terminal, com fortes dores: “Chorai e gemei neste vale de lágrimas, porque vosso será o reino dos céus”. Acho que ele seria processado por falta de ética e negligência.
E quando a ciência se mete na religião? Einstein disse: “Deus não joga dados.” O que é que entendia Einstein sobre os passatempos de Deus?
Um arcebispo opinava sobre células-tronco apesar de entender disso menos que uma lagartixa! Vejam bem, não é brincadeira de mau gosto, as salamandras regeneram membros completos, braços, pernas, rabo. E sozinhas!
Minhas últimas noites têm sido de insônia e de muita reflexão. Passei a perceber que como qualquer católico sou obrigado a aceitar as regras da igreja nos casos em que fé e conhecimento conflitam. O papa discursou um dia contra o uso da camisinha na África! Agora voltou atrás. Ele entende de AIDS?
Se a razão e a revelação são métodos válidos por que então dão resultados diferentes? Numa sala há cientistas olhando os resultados de um experimento e dizendo: “já temos os fatos, agora precisamos das respostas.” Na outra sala, religiosos mostrando livros sagrados, “temos a resposta, agora precisamos dos fatos”.
Sinto-me só nestas ponderações. Aprendi com a minha avó que a solidão é um mito. Ela era uma mulher muito espirituosa e, pouco antes de morrer, me disse no leito do hospital: “Meu neto, vou lhe revelar meu grande segredo: nós nunca estamos sós, sempre tem alguma coisa incomodando. Em poucos anos você vai chegar à terceira idade, Bartolo. Tente aproveitar cada momento. Descobri que só há uma coisa lamentável na terceira idade: não existe quarta!”
Quando comecei a rezar um pai-nosso, ela me interrompeu delicadamente: “não precisa rezar mais, com tudo que rezei nesta vida por que Deus iria me atender só agora que estou chegando ao fim?
– Mas, avó, eu disse, a senhora fala como alguém que se converteu ao ateísmo!
– Acertou, querido, e me sinto mais tolerante do que nunca. As pessoas que eu vi aqui nos últimos meses tentando aliviar nossa dor eram médicos, enfermeiras e os clowns da “Trupe da Saúde”. Cada um do seu jeito, eles não se importam com as crenças ou descrenças dos doentes, mas com sua melhoria. Alguns eram ateus, portanto incapazes de pilotar um avião contra um prédio, ou apedrejar um homem por trabalhar aos sábados, ou uma mulher por ser adúltera (quem sabe num daqueles sábados em que o marido andava trabalhando). Seria um ateu capaz de condenar alguém a arder no fogo eterno por discordar de suas opiniões? Por que é que só para as pessoas de fé que perguntar ofende, sendo que para o ateu é a coisa mais sensata a se fazer quando faltam evidências?
Ela faleceu um dia depois. Suas últimas palavras foram: “Estou vendo um túnel se aproximando. Daqui a pouco saberei o que há do outro lado. Qualquer coisa, eu ligo para vocês...”
(Tirando a batina)
Estou renunciando hoje ao meu sacerdócio. Dona Mônica vai ficar contente.
Felicidades e até sempre meus irmãos.
Fim
Texto extraído do livro “Penso, logo Complico”. Editora Livre Expressão, 2011.
(mais informações em: www.juanico.com.br ou juanico@juanico.com.br)