O artigo seguinte foi retirado da revista Free Inquiry, Volume 17, Número 3.
Escrito por Theodore Schick, Jr.
Tradução: Marcos Joel
Embora Platão tenha demonstrado a independência lógica de Deus e da moralidade há mais de 2.000 anos no Eutífron(1), a crença que a moralidade requer Deus continua a ser amplamente aceito como a moral máxima. Em particular, isto serve como pressuposto básico da teoria fundamentalista cristã social. Os fundamentalistas afirmam que todos os males da sociedade - desde a AIDS até a gravidez fora do casamento - são o resultado de uma falha na moralidade e que esta quebra se deva ao declínio na crença em Deus. Apesar de muitos fundamentalistas apontarem o início desse declínio à publicação de Charles Darwin, A Origem das Espécies (1859), outros indicam a decisão da Suprema Corte, em 1963, que proíbe a oração em sala de aula. Na tentativa de neutralizar essas supostas fontes de decadência moral, os fundamentalistas de toda a América estão procurando restaurar a crença em Deus, promovendo o ensino do criacionismo e da oração na escola. A crença de que a moralidade necessita de Deus não está limitado a teístas, no entanto. Muitos ateus também o admitem. O existencialista Jean-Paul Sartre, por exemplo, diz que: "Se Deus está morto, tudo é permitido." Em outras palavras, se não houver nenhum ser supremo para estabelecer a lei moral, cada indivíduo é livre para fazer o que lhe agrada. Sem um legislador divino, não pode haver lei moral universal.
A idéia de que Deus cria a lei moral é muitas vezes chamado de "Teoria do Comando Divino de Ética." Segundo essa visão, o que torna uma ação correta é que Deus quer que isso seja feito. Que um agnóstico devesse entender essa suspeita teoria é evidente, pois, se alguém não acredita em Deus ou se não tem certeza que Deus é o Deus verdadeiro, ser dito que se deva fazer como os mandamentos de Deus não vai ajudar ninguém a resolver quaisquer dilemas morais. O que não é tão óbvio é que os teístas devem achar essa teoria suspeita, também, pois ela é incompatível com a crença em Deus.
O Legislador Arbitrário
Para entender melhor a importação da Teoria do Comando Divino, considere o conto seguinte:
"Parece que, quando Moisés desceu da montanha com as tábuas contendo os Dez Mandamentos, os seus seguidores lhe perguntaram o que elas revelavam sobre como deveriam viver suas vidas. Moisés disse-lhes: 'Eu tenho uma notícia boa e uma má notícia.'
'Dê-nos a boa notícia em primeiro lugar,' eles disseram.
'Bem, a boa notícia', respondeu Moisés, 'é que ele manteve o número de mandamentos abaixo de 10'.
'Ok, qual é a má notícia?' perguntaram.
'A má notícia,' Moisés respondeu: 'é que ele manteve um mandamento sobre o adultério.'
A questão é que, de acordo com a Teoria do Comando Divino, nada é certo ou errado a menos que Deus queira que seja assim. Independentemente do que ele diga. Então, se Deus tivesse decretado que o adultério era permitido, então o adultério seria admissível.
Vamos aproveitar esta linha de raciocínio até sua conclusão lógica. Se a Teoria do Comando Divino fosse verdade, então os Dez Mandamentos poderiam ter sido algo como isto:
Deverás matar a todos que não goste.
Estuprarás todas as mulheres que desejares.
Deverás roubar tudo o que cobiçares.
Deverás torturar crianças inocentes em teu tempo livre.
A razão pela qual isso é possível é que matar, estuprar, roubar e torturar não estavam errados diante de Deus que os fez assim. Uma vez que Deus é livre para estabelecer os conjuntos de princípios morais à sua escolha, ele poderia muito bem ter escolhido este conjunto como a qualquer outro.
Muitos poderiam considerar este um reductio ad absurdum(2) da Teoria do Comando Divino, pois é insensatez pensar que tal matança desenfreada, estupro, roubo e tortura poderia ser moralmente admissível. Além disso, acreditar que Deus poderia ter ordenado essas coisas é de destruir qualquer um que pudesse ter motivos para elogiar ou adorá-lo. Leibniz, em seu Discurso sobre Metafísica, explica:
"Em afirmar, portanto, que as coisas não são boas de acordo com qualquer padrão de bondade, mas simplesmente pela vontade de Deus, parece-me que se destrói, sem perceber, todo o amor de Deus e toda a sua glória. Por que elogiá-lo pelo que ele fez, se ele seria igualmente louvável em fazer o contrário? Onde vai a sua justiça e sua sabedoria se ele tem apenas um certo poder despótico, se a arbitrariedade toma o lugar da razoabilidade e se de acordo com a definição dos tiranos, a justiça consiste em o que é agradável para o mais poderoso? Além disso, parece que todo ato da vontade pressupõe alguma razão para a boa vontade e isso, naturalmente, deve preceder o ato."
Para Leibniz, se as coisas não são nem certo nem errado, independentemente da vontade de Deus, então Deus não pode escolher uma coisa em detrimento de outra, porque é certo. Portanto, se ele escolher um ou outro, sua escolha deve ser arbitrária. Mas um ser cujas decisões são arbitrárias não é um ser digno de adoração.
O fato de que Leibniz rejeita a Teoria do Comando Divino é significativo, pois ele é um dos teístas mais empenhados na tradição intelectual ocidental. Ele argumenta detalhadamente que deve haver um todo-poderoso, onisciente e bondoso Deus e, consequentemente, que este deve ser o melhor dos mundos possíveis, que tal Deus não poderia criar nada menos. Desde que Voltaire satirizou essa visão em Cândido(3), tem sido difícil para defender com seriedade. Não obstante, o que Leibniz demonstra é que, longe de ser desrespeitoso ou herético, a visão de que a moralidade é independente de Deus é uma questão extremamente sensível e fiel para um teísta manter.
Uma Teoria Vazia
Para evitar a acusação de absurdo, um teórico Comando Divino poderia tentar negar que a situação descrita acima é possível. Ele poderia argumentar por exemplo, que Deus nunca iria perdoar tal matança, estupro, roubo e tortura, porque Deus é bondoso. Mas para fazer tal afirmação a teoria torna-se vazia. A Teoria do Comando Divino é de natureza da moralidade. Como tal, ela nos diz o que faz algo ser bom oferecendo uma definição de moralidade. Mas, se a bondade é um atributo de definição de Deus, então Deus não pode ser usado para definir a bondade, pois, nesse caso, a definição seria circular - o conceito a ser definido estaria fazendo a definição - e tal definição seria pouco informativa. Se ser bondoso é uma característica essencial de Deus, então toda a Teoria do Comando Divino nos diz que as boas ações seriam desejadas por um extremo bem estar. Apesar disso ser certamente verdade, isto é ignorância. Por isso não nos diz o que torna algo bom e, portanto, não aumenta a nossa compreensão da natureza da moralidade.
Um teórico Comando Divino pode tentar evitar essa circularidade, negando que a bondade seja um atributo de definição de Deus. Mas isso iria levá-lo da frigideira para o fogo, pois se a bondade não é uma característica essencial de Deus, então não há garantia de que aquilo que ele quer vai ser bom. Ainda que Deus seja todo-poderoso e onisciente, não decorre que ele seja totalmente bondoso, pois, como nos ensina a suposta história de Satanás, ele pode ser poderoso e inteligente sem ser bom. Assim, a Teoria do Comando Divino enfrenta um dilema: se a bondade é um atributo de definição de Deus, a teoria é circular, mas se não é um atributo que o determine, a teoria é falsa. Em ambos os casos, a Teoria do Comando Divino não pode ser considerada uma teoria viável para a moralidade.
As considerações anteriores indicam que não é razoável acreditar que uma ação é correta porque Deus quer que isso seja feito. Pode ser plausível acreditar que Deus queira que uma ação seja feita por que seja certa, mas crer nisso é ter fé que a justa ação é independente de Deus. Em qualquer caso, a visão de que a lei moral requer um legislador divino é insustentável.
Deus, o Executor
Há aqueles que sustentam, no entanto, que mesmo que não seja necessário que Deus seja o autor da lei moral, é ele, contudo, imprescindível como aplicador dela, pois sem a ameaça de punição divina, as pessoas não vão agir moralmente. Mas esta posição não é mais plausível do que a Teoria do Comando Divino em si.
Em primeiro lugar, como uma hipótese empírica sobre a psicologia dos seres humanos, isto é questionável. Não há nenhuma evidência inequívoca de que os teístas são mais morais do que os não-teístas. Não somente estudos psicológicos falharam em encontrar uma correlação significativa entre freqüência de culto religioso e de conduta moral, mas os criminosos condenados são muito mais propensos a ser teístas do que os ateus.
Em segundo lugar, a ameaça de punição divina não pode impor uma obrigação moral, por que não seria o certo a fazer. Ameaças extorquem, e não criam uma obrigação moral. Assim, se nossa única razão para obedecer a Deus é o medo da punição se não o fizermos, então, do ponto de vista moral, Deus não tem direito a reivindicar a nossa lealdade mais que Hitler ou Stalin.
Por outro lado, uma vez que o auto-interesse não é uma base adequada para a moralidade, não há razão para acreditar que céu e inferno não podem executar a função reguladora muitas vezes atribuída a eles. Céu e inferno são muitas vezes entendidos como o cajado que Deus usa para nos fazer entrar na linha. O céu é a recompensa para as pessoas boas por as tê-lo sido assim, e o inferno é o castigo para as pessoas que foram más. Mas considere isto. As pessoas boas fazem o bem, porque eles querem fazer o bem - não porque elas irão se beneficiar pessoalmente com isto ou porque alguém as forçou a fazê-lo. Aqueles que fazem o bem apenas em próprio benefício ou para evitar danos pessoais não são boas pessoas. Alguém que salva uma criança se afogando, por exemplo, só porque foi oferecida uma recompensa ou foi fisicamente ameaçada não merece a nossa consideração. Desse modo, se o único motivo para a realização de boas ações é o seu desejo de ir para o céu ou o seu temor de ir para o inferno - se todas suas outras ações são motivadas puramente por interesse próprio - então você devia ir para o inferno porque você não é uma boa pessoa. Uma preocupação obsessiva com o céu ou o inferno realmente deve diminuir as chances de salvação ao invés de aumentá-las.
Os fundamentalistas percebem corretamente que padrões morais universais são necessários para o bom funcionamento da sociedade. Mas eles acreditam equivocadamente que Deus é a única fonte possível de tais normas. Filósofos tão diversos como Platão, Immanuel Kant, John Stuart Mill, George Edward Moore e John Rawls têm demonstrado que é possível ter uma moralidade universal sem Deus. Contrariamente ao que os fundamentalistas poderiam nos fazer acreditar, então, que a nossa sociedade realmente não precisa de mais religião, mas de uma noção mais rica de natureza moral.
Theodore Schick Jr., é professor de Filosofia na Muhlenberg College e co-autor (com Lewis Vaughn) de como pensar sobre coisas estranhas: Pensamento Crítico para uma Nova Era (Mayfield Publishing, 1995).
Notas do tradutor:
1 - Eutífron é um dos primeiros diálogos de Platão, datando de cerca de 399 a.C.. Ele apresenta o filósofo grego Socrates e Eutifro, conhecido como sendo um experto religioso. Eles tentam estabelecer uma definição para piedade.
2 - Reductio ad absurdum significa algo próximo a "redução ao impossível" (expressão frequentemente usada por Aristóteles), também conhecida como um argumento apagógico, reductio ad impossibile ou, ainda, prova por contradição, é um tipo de argumento lógico no qual alguém assume uma ou mais hipóteses e, a partir destas, deriva uma consequência absurda ou ridícula, e então conclui que a suposição original deve estar errada.
3 - “Cândido” é uma das obras mais conhecidas de Voltaire. O texto contrapõe ingenuidade e esperteza, desprendimento e ganância, caridade e egoísmo, delicadeza e violência, amor e ódio. Tudo isso mesclado com discussões filosóficas sobre causas e efeitos, razão e ética.
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